segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

A fera da Penha


A fera da Penha


Era a manhã de um feio e frio dia 30 de junho. As pessoas se movimentavam rumo ao trabalho, e a cidade estava despertada há muito, exatamente como toda metrópole que se preze. As pessoas que trabalhavam ou no próprio local, ou nas imediações do matadouro do bairro da Penha, já se encontravam em seus postos e já tinham iniciado suas atividades quando gritos e correrias começaram a chamar a atenção de todos. Ninguém entendia o que estava se passando, mas, quase todo o mundo deixava seus afazeres para saber o que efetivamente acontecia. Até que tudo começou a ficar mais claro. Chocada, a maioria das pessoas próximas ao local foi informada de que, em um terreno baldio, ali pertinho, fora encontrado o corpo de uma criança, ainda sem sexo definido, todo queimado e irreconhecível. A brutalidade da cena chocou até os homens mais rudes acostumados com a matança de animais no abatedouro do bairro, ninguém entendendo como podia ter acontecido uma barbaridade daquela, com uma criança que aparentava, talvez, cinco anos. Logo se saberia, porém, que a criança era um garota de quatro anos, que seu nome era Tânia Maria e que, antes de ter seu corpo incendiado, levara um tiro à queima-roupa na cabeça.

O triste acontecimento se torna um prato cheio para a imprensa. A notícia chegou à população em grandes e dramáticas manchetes, dividindo os noticiários com as eleições de outubro próximo, com a escolha da “Miss Brasil” de 1960, ainda com o caso Aída Curi, com o Crime do Sacopã e com uma estranha história que dava conta de que o mundo iria se acabar no dia 14 de julho próximo. O drama real do assassinato da garota virou uma tragédia, daquelas que sempre povoavam o mundo de Nelson Rodrigues.
O triste acontecimento se torna um prato cheio para a imprensa. A notícia chegou à população em grandes e dramáticas manchetes, dividindo os noticiários com as eleições de outubro próximo, com a escolha da “Miss Brasil” de 1960, ainda com o caso Aída Curi, com o Crime do Sacopã e com uma estranha história que dava conta de que o mundo iria se acabar no dia 14 de julho próximo. O drama real do assassinato da garota virou uma tragédia, daquelas que sempre povoavam o mundo de Nelson Rodrigues.
Assim que acionada, a polícia não teve muitas dificuldades de chegar ao assassino. À assassina, na realidade. Seu nome, Neide Maria Lopes, idade, 22 anos, estado civil, solteira, profissão, comerciária, motivação do crime: ciúme e vingança. Logo, em menos de vinte e quatro horas, toda a imprensa noticiava a prisão e confissão de Neide, a partir de então conhecida como “Frankenstein de Saia”, “Mulher-Fera”, “Besta-Humana” e, posteriormente, pelo cognome que mais colou à sua figura, “A Fera da Penha”.
Nos próximos dias, toda a história foi desvendada em detalhes, a população ficando cada vez mais impressionada quando os detalhes da trama macabra começaram a ser reveladas em seus aspectos mais sinistros.

Neide Maria, solitária e recatada, conheceu Antônio, motorista de profissão, em uma estação de trem; o rapaz, em pouco tempo de conversa, percebe que aquela moça tímida era uma presa fácil, iniciando, ali, um romance daqueles típicos do início da década de sessenta. Neide estava esperançosa de terminar seus dias solitários, já que Antônio, além de educado, lhe pareceu uma pessoa honesta, digna de confiança. Tornam-se amantes, mas com promessa de casamento, assim que as condições o permitissem.
Até que a dura realidade abriu seus olhos: após cerca de três meses de namoro, encontrando-se, praticamente, todos os dias, ela descobre que Antônio lhe escondia o fato de que, além de casado com uma mulher de nome Nilze, ainda tinha duas filhas pequenas. Nessa época, namorar um homem casado era fatal para qualquer garota, principalmente quando o fato era descoberto por amigos e vizinhos. Seu nome “caía na boca do povo”, conforme se dizia.
A descoberta desse fato despertou-lhe os mais baixos instintos humanos; sentiu-se traída pelo homem em quem confiava, além de jogar por terra todos os seus sonhos de ter um bom homem ao seu lado por toda a vida. Resolveu colocar Antônio na parede: ou a família ou ela. Sem discussão.
Só que Antônio foi empurrando o caso com a barriga, prometendo, ao longo dos meses, que iria abandonar a mulher, que não agüentava mais, que tudo era uma questão de tempo, que havia o problema das crianças, que ela tivesse paciência e assim por diante. Nada ignorante, Neide logo ficou convicta de que seu namorado nunca iria abandonar sua família, que seus sonhos nunca se realizariam. Sua ira começou a se transformar em uma forte convicção: iria se vingar da afronta de Antônio de uma forma que ele, ao longo de sua vida, nunca mais esqueceria.

Seu primeiro passo foi se aproximar da família do namorado. Conseguiu enganar Nilza, dizendo-se ser uma antiga amiga do colégio, ganhando sua confiança e começando a freqüentar sua casa. Sua educação e boas maneiras conquistaram Nilza, as duas iniciando uma relação de amizade. Sabendo pela rival que Tânia Maria era o xodó do pai, imediatamente se convenceu de que a menina seria o alvo de sua vingança. O destino da garotinha ficou, assim, determinado.
Conhecendo a rotina da casa do amante, principalmente os horários em que as duas garotas iam e vinham do colégio onde estudavam, ela bolou um plano diabólico: fazendo-se passar por Nilza, Neide telefonou para a escola, dizendo que Tânia teria que voltar mais cedo para casa e que uma vizinha iria passar por lá para pegar a garota. O pessoal da escola de nada desconfiou, e Neide saiu com Tânia aparentemente despreocupada. Qual não foi a surpresa de Nilza, sua dor, ao ser informada, mais tarde, quando levara o lanche da garotinha, de que Tânia não se encontrava por lá, que saíra mais cedo exatamente como ela havia pedido ao telefone. Reconheceu as feições de Neide conforme descritas pelo pessoal da escola.
Em desespero, entra em contato com o marido, contando-lhe, angustiada, sobre o acontecido. Antônio, na mesma hora, ficou convicto da participação da namorada, mas, como ela sempre se mostrara cordial, não obstante suas cobranças para que ele abandonasse a família, pensou em muita coisa, menos na possibilidade de que ela pudesse fazer algum mal à sua filha.
No entanto, Neide tinha as mais macabras das intenções; levou a garota para diversos locais, inclusive para a casa de uma amiga, ao mesmo tempo em que adquiriu uma garrafa de álcool em uma farmácia por onde passara. Em casa, Antônio e Nilza aguardavam, aflitos, algum contato de Neide ou mesmo alguma notícia da filha desaparecida. A chegada da noite deixou o casal mais angustiado, agora desconfiado e temeroso de que algo de muito ruim poderia ter acontecido.Às oito e meia da noite, Neide decidiu que Tânia Maria tinha que ser sacrificada. 
Inflexivelmente, dirigiu-se ao local acima descrito, sabendo que, àquela hora, ele estaria completamente deserto, e, sem dó nem piedade, agarra o revólver, mira a cabeça da garota, dá-lhe um tiro, após o qual, pega a garrafa de álcool, despeja o líquido sobre o corpo estendido no chão e lhe ateia fogo. Logo abandona o local, dirigindo-se para sua casa.
As investigações policiais, a cargo do delegado Olavo Campos Pinto, do 24º Distrito Policial, não tiveram muita dificuldade em chegar até Neide, porquanto ela deixara enormes rastros por onde passara. Com uma frieza que impressionou a todos, já que era evidente sua culpa no episódio, negou firmemente as acusações em interrogatório que ultrapassou as doze horas. Negava e negava; protestava inocência, dizendo-se perseguida pelas acusações de Antônio, só porque tivera um caso com ele. Ela só ficou abalada quando confrontada com o revólver utilizado para a perpetração do nefando crime. Olavo Campos, mostrando-lhe a arma, já confirmada ser de sua propriedade, diz a Neide que, se o revólver era dela, somente ela poderia ter praticado o bárbaro ato, porque, além de ter os motivos para tal, ela não tinha álibi para confirmar sua não participação no episódio. Mas ela se negava a tirar a máscara de sua face, dava pistas falsas, chegando a perguntar ao delegado por que tinha que ser ela a assassina e não outra qualquer. Este teve que lhe explicar que um revólver tem raias dentro do cano e que, quando uma pessoa atira, a bala sai girando e o projétil apresenta as marcas das raias do cano. Também, lhe foi mostrado o laudo que confirmava ser de seu revólver a bala assassina. 
Dessa forma, com argumentos e convicção, Olavo Campos foi minando as resistências de Neide, até que, em uma crise de choro, ela confessa todos os detalhes do crime e de sua preparação, seu choro se tornando convulsivo, em um misto de culpa e resignação.
A imprensa, assim que Neide confessou sua culpa, fez seu carnaval de sempre, cada órgão se esmerando em escolher as manchetes mais apelativas. Mas o epíteto que mais pegou, e que ficou até os dias de hoje foi mesmo “Fera da Penha”.
Quando a imprensa noticiou que a reconstituição do crime seria realizada com a presença da assassina, centenas de pessoas se dirigiram ao local do crime, dezenas de piedosas mulheres, daquelas que vão à missa todos os fins de semana e pedem proteção a Deus contra as maldades do mundo, ficaram de prontidão no local, esperando a chegada de Neide exigindo justiça e prontas para linchá-la, a maioria com esperança de poderem fazer justiça com as próprias mãos se a reconstituição viesse mesmo a ser realizada. As próprias detentas de Penitenciária de Mulheres de Bangu, algumas com crimes tão perversos quanto o de Neide, revoltadas, ameaçaram matá-la e também fazer justiça. Segundo elas, era verdade que cometeram crimes terríveis, Porém o de Neide teria ultrapassado todos os limites. A morte seria pouco para ela. 
E não demoraria muito, a quase totalidade da imprensa, como sempre acontecia quando um crime cuja barbaridade excedia aos limites do aceitável, estava discutindo a adoção no país da pena de morte. A santificação de Tânia Maria, assim como aconteceu no caso Aída Curi, se espalhou por todo o Rio de Janeiro. A imprensa, principalmente a revista O Cruzeiro, que se julgava a guardiã da moral e dos bons costumes, mas, que se aproveitava das desgraças do cotidiano para ser a líder de vendas entre as revistas brasileiras com suas reportagens sensacionalistas, se encarrega desse mister.
Na edição de 30 de junho de 1960 da revista O Cruzeiro, o famoso repórter policial Arlindo Silva deixaria para a posteridade a matéria cognominada “Tânia Maria é agora menina santa”, explicando aos leitores de todo o Brasil o que estava acontecendo com o local onde o crime foi perpetrado, como para lembrar a todos que o crime não poderia ser esquecido:
“Dizem que a memória do povo é fraca, mas o caso do assassino da menina Tânia Maria, pelo Frankenstein de saias, Neide Maia Lopes, duvido que o povo esqueça. O local onde a garotinha foi morta, um terreno baldio junto ao matadouro da Penha (Rio de Janeiro), está convertido num pequeno santuário, onde, diariamente, milhares de pessoas fazem preces, levam flores, acendem velas e pedem graças. O pequeno pedaço de chão onde a criança morreu queimada, após levar tiro na cabeça, foi cercado por barras de ferro, imitando um pequeno berço, por um popular anônimo. No dia seguinte à morte de Tânia, já se erguia no local uma cruz branca, e, desde então, a peregrinação não cessou. Começa de manhã e vai até altas horas da noite. Senhoras, moradoras nas imediações, contam que cerca de 1.000 pessoas por dia, muitas vindas de longe ou em trânsito pelas rodovias Rio-São Paulo e Rio-Petrópolis, vão até o local onde morreu a “Flor do Campo”. Este é o nome que poetas desconhecidos deram à pobre menina. À cruz estão pregados poemas de louvor e glorificação à pequena vítima. Esses poemas falam: “Ó Santa menina - O mundo não era teu - Tu foste predestinada - Para a glória do céu”. Também foi pregado à cruzinha branca o “Hino à Flor do Campo”, com estrofes assim: “Ó menina imaculada - Ó meu anjo salvador - Aqui, aqui te louvamos - Com a nossa imensa dor”. Continua: “Vamos todos para o campo - Lá morreu a nossa flor - Aqui, aqui te ofertamos - Todo nosso grande amor”. E o Hino termina: “Este campo consagrado - É da filha do Senhor - Aqui, aqui nós rezamos - Ó meu anjo salvador”. Em volta do pequeno carneiro improvisado, oram, ajoelhadas, mulheres idosas, mocinhas e crianças, como se estivessem ante um altar. Velhas mães, não contendo sua indignação, dizem que a Polícia deveria deixar a mulher-fera nas mãos do povo.”


E como também sempre acontece com esses crimes com grande repercussão (vide o caso Suzane von Richthofen/irmãos Cravinhos), várias autoridades, nessa mesma matéria, foram entrevistadas para darem sua opinião sobre o que deveria ser feito quando a justiça se deparava com crimes de tal envergadura, com requintes de crueldade.



Na mesma matéria, chamado a comentar sobre o assunto, o professor Jurandir Manfredini, docente de Psiquiatra da Faculdade de Medicina, ex-diretor do Serviço Nacional de Doenças Mentais, dizendo-se contra a pena de morte, mas, como todos aqueles que iniciam suas frases de efeito com as palavras “a princípio”, foi categórico ao criticar as leis do país:
“Em princípio, sou contra a pena de morte, com exceção de alguns casos, nos quais sou francamente favorável a essa punição. Por exemplo, todos os crimes contra crianças, como ataque, estupro, sevícia, ou morte cruel - caso da mulher-monstro da Penha - só podem ser punidos com a execução sumária do criminoso. Do mesmo modo, os crimes contra velhos indefesos devem merecer a mesma pena. Nestes aspectos, acho que o Código Penal brasileiro é deficiente e muito benévolo, o que tem permitido, pela impunidade, o aumento progressivo de crimes dessa natureza. Devemos acentuar que os países mais civilizados da atualidade adotam a pena de morte para certos casos de crimes perversos, e até mesmo para crimes que, aqui, seriam considerados leves. Considero que não haveria, em absoluto, regresso social ou cultural se o Brasil também adotasse a medida. O que, desgraçadamente, vai acontecer com Neide é que, protegida pela benevolência da nossa Lei e a intervenção da dialética dos advogados, essa criminosa acabará tendo uma pena leve, se não for até absolvida - o que não é de surpreender em face dos nossos costumes judiciários onde a impunidade é a regra comum.”
Também o doutor Cordeiro Guerra, ex-promotor do 1.º Tribunal do Júri, que, segundo a reportagem, teria marcado com brilho sua passagem pela tribuna, atuando em casos de grandes repercussões, foi chamado a opinar sobre o assunto: 
“A admitir-se a responsabilidade penal da acusada, Neide Maia Lopes, a pena aplicável deverá ser imposta em sua plenitude, com o maior rigor. Dificilmente se encontrará uma personalidade tão insensível, perversa, uma intensidade de dolo tão grande, uma capacidade de dissimulação tão excepcional - tudo em ação contra uma criança indefesa. Considerando as circunstâncias do crime, pode-se dizer que a ele se aplicam numerosos agravantes previstos no Código Penal. É preciso que o tempo não apague da mente popular o horror do crime, e que, depois, não tenhamos o paradoxo freqüente de ver o criminoso objeto de simpatia ou piedade. Fatos como este e como outros que ainda recentemente abalaram a opinião pública, estão a indicar que já se aproxima a hora da revisão dos Códigos Penal e de Processo Penal, no Brasil. O homicídio qualificado por motivo torpe, praticado contra criança, com requintes de perversidade, dificilmente escaparia à pena capital nas legislações dos povos mais cultos.” 
 O julgamento de Neide - exatamente como acontece com todos os crimes de grande repercussão - se tornou uma arena de circo, cada jornal ou revista trazendo reportagens com mais adjetivos do que substantivos. O Resultado foi o esperado: “A Fera da Penha” foi condenada a 33 anos de prisão, saindo, ainda jovem da prisão, por bom comportamento, após cumprir 15. Nunca abriu boca para comentar a respeito de seu crime, nem logo após os acontecimentos, nem depois que deixou a prisão. Antes do crime, levava uma vida pacata, sem maiores sobressaltos. Depois do crime, levou uma vida incógnita, pacata, sem sobressaltos e se dedicou a trabalhos filantrópicos. Está viva, bem, e mora no Rio de Janeiro


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Livros



Capa: Crimes que abalaram o Brasil, de vários autores

A obra é uma coletânea organizada pelos jornalistas George Moura e Flavio Araújo, com reportagens de Marcelo Faria de Barros e Wilson Aquino. Eles se basearam em casos apresentados pelo programa Linha Direta - Justiça, exibido pela Rede Globo de Televisão. Os casos policiais mostrados nesse livro, que cobre boa parte do século XX, representam a imagem de uma época.


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